Seca recorde forma ‘desertos’ na Amazônia e ameaça criar onda de refugiados climáticos
Barcos e casas flutuantes encalham no leito dos rios; estiagem tira renda de quem vive da pesca e da agricultura
Brazil
Amazon Rainforest
Nesse tempo todo, o curso d’água foi a via para o sustento, as tradições e a mobilidade dos moradores da cidade conhecida como “princesinha” do Rio Solimões.
Em 2024, porém, essa estrada fluvial foi bloqueada pela maior seca já registrada no afluente do Amazonas.
O que antes era floresta e água, agora parece deserto.
Em 12 de outubro, o trecho do Solimões em Manacapuru atingiu 2 metros, segundo a Defesa Civil do Amazonas. É o menor nível desde o início dos registros, há 120 anos.
Só no Amazonas, são mais de 800 mil pessoas afetadas. Não apenas a Bacia do Solimões, mas todos os 62 municípios do Estado estão em emergência.
Pelo segundo ano seguido, a seca extrema encalha barcos e casas flutuantes, agora escoradas só em troncos, na lama e na areia, o que isola comunidades e obriga moradores a percorrerem longos trechos a pé.
A falta de chuva também está por trás da explosão de incêndios no bioma, que fazem explodir a degradação florestal e espalham a fumaça pelo País.
Henrique Freitas, de 21 anos, mora com a mãe e os irmãos em Manacapuru, e vive da pesca. Com a seca no Solimões, caminha sob sol forte mais de meia hora todo dia para chegar ao rio, que antes estava na porta de casa e recuou dois quilômetros. “Era só descer e entrar na canoa”, disse ao Estadão.
“Às vezes a gente pensa em ir pra cidade, mas tinha de ter ao menos um trabalho fixo”
Henrique Freitas - Pescador
A seca também atrapalha a agricultura, que completa a (pouca) renda da família Freitas. O principal produto é a banana, mas metade da plantação morreu por falta de chuva.
Fotos: Musuk Nolte/Bertha Foundation
Para vender o que restou, eles transportam no ombro cargas de 25 a 40 quilos, por quilômetros, até chegar ao rio. Antes, bastava colocar diretamente no barco.
“Até pegar água pra tomar banho e beber está difícil”, relata outro pescador de Manacapuru, Josué Oliveira, de 51 anos.
A renda caiu praticamente a zero e ele tem andado “mais a pé que de canoa” pelo curso do rio. “Os peixes somem.”
Quando o rio subir, o barco de Oliveira precisará de reforma - ele estima ao menos R$ 6 mil. Por ora, encalhada na terra, a embarcação se deteriora pelo calor.
O governo estadual diz que já distribuiu 3 mil toneladas de alimentos no interior, além de 41 purificadores e 2,4 mil caixas d'água. Já o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional informa repasses de R$ 48,5 milhões ao Amazonas neste ano.
Janderson, filho de Josué, também vive da pesca e da agricultura, inviabilizadas pela seca • Musuk Nolte/Bertha Foundation
Eventos extremos desse tipo serão cada vez mais frequentes. Estudo da World Weather Attribution, que reúne pesquisadores do mundo todo, mostrou que a crise climática torna 30 vezes mais prováveis secas como a do ano passado na Amazônia. Em 2024, a estiagem já se repetiu.
A Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-29) será realizada este mês no Azerbaijão para discutir saídas. Os esforços e metas até agora são insuficientes para livrar o planeta do colapso.
Cristiane Cardoso em sua casa flutuante em Iranduba (AM), danificada pela seca • Musuk Nolte/Bertha Foundation
Em Iranduba, cidade na margem esquerda do Solimões, Cristiane Cardoso, de 42 anos, era garçonete de um barco-restaurante, mas perdeu o emprego por causa da seca. E, sem a sustentação da água, a casa flutuante onde vive com os três filhos se partiu. Ela cogita se mudar, o que a tornaria uma refugiada climática.
Bacia amazônicaEm seca recorde pelo segundo ano consecutivo, trechos de afluentes do Rio Amazonas chegam a menor nível em mais de um século
Segundo relatório da Organização Internacional de Migrações das Nações Unidas, o Brasil registrou 745 mil deslocamentos internos em 2023 por desastres naturais. Para ter segurança de vida nova, porém, os moradores do interior do Amazonas terão de ir mais longe do que a capital.
Em Manaus, o Solimões encontra o Rio Negro e forma o Amazonas, maior curso d’água do mundo em vazão e extensão. Mas em 2024 o Negro também atingiu a menor marca desde o início do século passado.
Chico Carnaúba, pescador de 49 anos, conta que também faltam água potável e peixes em Puraquequara, um dos lagos que secaram perto da capital. O jaraqui, o pacu e o tucunaré, os que mais costuma pegar, desapareceram. “Estamos esquecidos.”
Canais secam e casas encalham em São Francisco do Mainã, deixando comunidade isolada • Musuk Nolte/Bertha Foundation