Cada vez mais cidadãos e organizações não governamentais em todo o mundo estão buscando os tribunais por justiça sobre mudança climática. O alcance sem precedentes dessas disputas merece ser destacado. Esse tipo de litígio relativamente recente está forjando a opinião pública, e constitui uma forma de pressão sobre os Estados e as indústrias que os está forçando a sair de sua inércia..
Anne-Sophie Novel
Os anos se passam e novos recordes são definidos para o aumento das temperaturas. Os Gases de Efeito Estufa continuam a aumentar, e as populações em todo o mundo estão cada vez mais preocupadas e descontentes com a falta de reação dos Estados frente à crise da mudança climática. Como resultado, o número de ações judiciais contra a inércia frente à mudança climática está em forte crescimento.
O primeiro caso deste tipo no mundo foi apresentado em 2013, na Holanda. A Fundação Urgenda, um grupo ambientalista holandês, processou o governo pelo “fracasso do Estado holandês em tomar ações suficientes para evitar a mudança climática perigosa”. Na época, a Holanda era um dos países mais poluidores da União Europeia, e a Fundação exigiu a tomada de medidas para reduzir as emissões do país de 25% para 40% até 2020 (em comparação aos níveis de 1990).
Em 24 de junho de 2015, o Tribunal de Primeira Instância de Haia decidiu em favor da Urgenda – sentença confirmada em 9 de outubro de 2018 pelo Tribunal de Apelação de Haia, com base em fatos cientificamente comprovados e em consonância com o princípio tradicional do dever de diligência de um governo. O tribunal decidiu que as emissões holandesas de gás devem ser reduzidas em pelo menos 25%. Reconhecida como a primeira ação judicial de responsabilização climática do mundo, esta decisão estabelece um precedente que, desde então, inspirou outras ações legais por todo o mundo.
Em 5 de abril de 2018, o Supremo Tribunal da Colômbia decidiu em favor de 25 jovens que haviam processado o governo por não garantir seus direitos fundamentais à vida e ao meio ambiente. Com o apoio da Dejusticia, uma ONG de direitos humanos com Sede em Bogotá, eles obtiveram uma decisão judicial ordenando que o governo, os governadores de províncias e os municípios elaborassem um plano de ação para preservar a floresta – evocando seu dever de proteger a natureza e o clima em favor das gerações presentes e futuras.
Mais cedo no mesmo ano, na Noruega, um veredito menos favorável aos reclamantes foi proferido. Em 2015, duas ONGs, a Greenpeace Nordic e a Nature and Youth, se opuseram à abertura de novas áreas de perfuração de petróleo e gás no Mar de Barents, no Oceano Ártico, um dos mais frágeis ecossistemas do mundo. No entanto, o Tribunal de Oslo decidiu que esses novos esforços de perfuração não violavam a Constituição da Noruega. Exigiu-se que as ONGs reembolsassem 580 mil coroas norueguesas ($ 66.100) em custas judiciais ao governo.
ATambém em 2015, nos Estados Unidos, 21 jovens representados pela organização sem fins lucrativos Our Children’s Trust, apresentou um recurso em um tribunal do Oregon exigindo que o governo federal dos Estados Unidos reduza significativamente as emissões de CO2. Sua queixa afirma que o governo, por meio de ações afirmativas que causam a mudança climática, violou os direitos constitucionais da geração mais jovem à vida, à liberdade e à propriedade, e não protegeu os recursos essenciais da confiança pública.
Conhecido como Juliana v. United States Youth Climate Lawsuit (Processo Judicial Climático Juliana x Estados Unidos, em tradução livre), este julgamento precisa ainda ser aprovado pelo Supremo Tribunal, apesar do apoio de centenas de pessoas, inclusive membros do Congresso dos EUA, juristas, empresários, historiadores, médicos, advogados internacionais, ambientalistas, e mais de 32 mil jovens com menos de 25 anos..
Em uma audiência sobre o caso, em 4 de junho de 2019, realizada pelo Tribunal de Recursos da Nona Circunscrição [um tribunal federal dos EUA que precede o Supremo Tribunal], um painel de três juízes continuou cético sobre se o tribunal tinha algum papel a desempenhar ao lidar com o caso desse marco histórico. A decisão deles pode ter implicações importantes sobre se os tribunais podem ou não ser usados para julgar uma ação climática nos EUA.
No Paquistão, no mesmo ano, um agricultor conseguiu requerer aos juízes que obrigassem o governo daquele país – que é especialmente afetado pelo aquecimento global – a adotar leis sobre o clima a fim de proteger sua fazenda e garantir seu direito à alimentação e acesso à água.
Na França, a primeira ação judicial relacionada à mudança climática teve início em dezembro de 2018 pela Notre Affaire à Tous, uma associação de justiça climática, com três outras ONGs (Oxfam França, Greenpeace França e a Fondation Nicolas Hulot pour la nature et l’homme). Chamado de “o caso do século”, apresentou seis demandas ao governo: a inclusão do clima na constituição; o reconhecimento da mudança climática como um crime de destruição ambiental; a possibilidade de os cidadãos defenderem o bem-estar climático judicialmente; a redução das emissões de Gás de Efeito Estufa (GEE); a regulamentação das atividades de empresas multinacionais, e o fim dos subsídios para combustíveis fósseis.
Auxiliada por inúmeros influenciadores, a petição foi um sucesso sem precedentes, com mais de 2 milhões de assinaturas obtidas em poucas semanas. Em março de 2019, quando ainda não havia resposta do governo, as ONGs apresentaram um recurso. Elas estão cientes de que o procedimento se arrastará, mas esperam aumentar a conscientização do público e promover a ideia de que procurar a justiça é um meio eficaz para forçar a ação.
No âmbito europeu, o primeiro litígio foi iniciado por um grupo de dez famílias de oito países – França, Portugal, Romênia, Itália, Alemanha, Suécia e também Quênia e Fiji – em maio de 2018. Os reclamantes do People's Climate Case (Processo Climático do Povo, em tradução livre) levaram o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia ao Tribunal de Justiça da União Europeia por ter permitido um nível muito alto de emissões de Gás de Efeito Estufa. Segundo um press release do People's Climate Case em abril de 2019, os reclamantes requereram aos líderes da UE a redução das emissões dos gases de efeito estufa em 55% até 2030 (em comparação a 1990), em vez da meta de 40%. Segundo eles, a meta atualmente definida é “inadequada em relação à real necessidade de evitar a perigosa mudança climática, e longe do que é necessário para proteger nossos direitos fundamentais à vida, à saúde, ao trabalho e à propriedade”.
Embora reconheça que a mudança climática afeta todos os europeus de maneiras diferentes, o EGC indeferiu o caso por questões processuais em maio de 2019, dizendo que os demandantes não tinham o direito de recorrer à justiça para contestar a meta climática da UE para 2030. As famílias que iniciaram a ação planejam recorrer ao Tribunal de Justiça Europeu – este é um caso a ser seguido.
Processar empresas pela mudança climática
Medidas jurídicas por crimes climáticos também estão sendo tomadas contra o setor privado. A natureza dos pedidos difere conforme o objetivo. Dos Estados, os reclamantes demandam mobilização e ações mais urgentes, proativas e vinculantes. Do setor privado demandam, cada vez mais, indenizações por perdas (lavouras, infraestrutura) no caso de riscos de mudança climática (ondas de calor, seca, enchentes etc.), ou a gestão dos empreendimentos a montante, especialmente em áreas costeiras.
Um dos processos mais significativos do setor privado foi apresentado na Alemanha em novembro de 2017. Após dois anos de tramitação, o tribunal concordou em apreciar o processo de Saúl Luciano Lliuya, um camponês peruano e guia montês da cidade de Huaraz (100 mil habitantes). Lliuya está processando a gigante alemã do setor de energia, RWE, a maior emissora de carbono da Europa, para forçá-la a pagar pelos danos causados pela mudança climática nos Andes. Depois que sua ação judicial foi considerada admissível, o processo entrou na fase de avaliação de especialistas. É um avanço simbólico para comprometer os Estados e as corporações à justiça climática mundial.
Nas Filipinas, em 2015, os sobreviventes do supertufão Haiyan e uma coalização de ONGs apresentaram um pedido na Comissão de Direitos Humanos do país para agir contra 47 multinacionais, incluindo a Shell, a ExxonMobil e a Chevron. Eles exigiram uma investigação sobre violações dos direitos humanos relacionadas aos efeitos da mudança climática e da acidificação dos oceanos, e o possível fracasso das empresas mais poluentes em cumprir suas responsabilidades para com o povo filipino. Outro caso a ser seguido..
Nos Estados Unidos, as ações judiciais contra a indústria petrolífera estão se multiplicando. A Big Oil [como são conhecidas as maiores empresas de petróleo e gás de capital aberto do mundo] foi acusada de ser responsável pela mudança climática e seus efeitos (aumento dos níveis de água e erosão costeira) e de deliberadamente “desacreditar” a ciência climática.
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) registrou quase 900 processos climáticos em todo o mundo, em maio de 2017. O número está aumentando diariamente: em maio de 2018, o banco de dados do Sabin Center for Climate Change Law (Centro Sabin para a Lei da Mudança Climática, em tradução livre), da Universidade Columbia, em Nova York, contou 1.440 processos judiciais relacionados ao clima em todo o mundo, incluindo 1.151 nos Estados Unidos.
“Algumas vezes, os reclamantes sabem muito bem que o julgamento não tem chance de êxito, mas é a cobertura da mídia que importa, e a forma como o processo é orquestrado”, explica Sandrine Maljean-Dubois, diretora de pesquisa no CNRS (Centro Nacional para Pesquisa Científica) da Universidade Aix-Marseille, na França. Segundo ela, como ela vê, “a principal questão é determinar que o Estado fracassou, que é responsável por essa deficiência e que deve remediar isso e escolher os meios para cumprir com suas obrigações”. É, portanto, uma questão de obter ação em vez de compensação, e de exercer pressão política por meio de ações judiciais, mas também por meio de passeatas ou de greves em favor do clima e, finalmente, de ver a sociedade civil adotando esse tipo de abordagem para outros assuntos – poluição do ar, biodiversidade, meio ambiente etc. “Mesmo perder uma ação judicial pode ser positivo, para mostrar a inadequação da lei”, conclui Maljean-Dubois.
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